Para ler já: Toda luz que não podemos ver

Toda luz que não podemos ver: resenha!

O bombardeio de uma cidade francesa chamada Saint-Malo em 7 de agosto de 1944. Esse é o ponto inicial de Toda luz que não podemos ver, de Anthony Doerr. A cinco ruas de distância um do outro, Marie-Laure e Werner enfrentam, cada um a sua maneira, o medo. Nós, por outro lado, somos apresentados ao passado dos dois.

A garota*

Num quarto em Paris, em 1934, uma menina cega de nove anos percorre os dedos na fachada em miniatura de casas já facilmente reconhecíveis, em uma maquete minuciosa e em escala de sua vizinhança. Detalhe por detalhe, ela aprende a contar quantos bancos de praça, bueiros, esquinas e postes de luz há entre sua casa e o Museu Nacional de História Natural, além de todos os outros caminhos que pode precisar no dia a dia.

Os dedos cuidadosos são de Maria-Laure LeBlanc, uma menina francesa que perdeu a visão ainda muito nova, por um problema de nascença. Sua rotina consiste em acompanhar o pai, chaveiro, ao trabalho no museu. Lá ela estuda, lê romances clássicos em braile, percorre os inúmeros corredores ouvindo o murmúrio dos visitantes e passa tempo conversando com o dr. Geffard, especialista em moluscos — pequenos animais que se tornam uma de suas grandes paixões. A tarefa de ensinar a filha a conhecer cada canto do bairro é o jeito que seu pai encontrou de não deixa-la refém de sua própria deficiência.

Quando Paris é dominada pelo exército nazista alemão, o pai dela aceita guardar escondida uma peça que, desconfiamos, pode ser a mais valiosa do acervo do museu, uma joia chamada Mar de Chamas. Assim, eles se mudam para a pequena cidade costeira de Saint-Malo, onde passam a morar com o estranho tio dele, Etienne, um veterano de guerra com distúrbios pós-traumáticos, e sua caseira, a bondosa e corajosa Madame Manec.

O rapaz*

Na Alemanha, na sala do orfanato Casa das Crianças, Werner Pfennig desmonta um rádio achado no lixo. Ele aprende para que serve cada peça, circuito e botão. O menino e sua irmã, Jutta, crescem apaixonados por ciência, uma fuga para as dificuldades financeiras do lar que acolhe mais uma dezena de crianças e a saudade do pai morto em um acidente de trabalho.

Quando tem a oportunidade de estudar em uma das melhores escolas do exército alemão por sua habilidade matemática, Werner deixa a casa com o sonho de se tornar um grande cientista e aos poucos passa a ser mais uma das engrenagens da máquina de guerra nazista. Entretanto, ele vai começar a aprender como suas pesquisas afetam vidas durante a guerra, especialmente quando vai parar na pequena cidade onde Marie-Laure se esconde.

O livro

Em Toda luz que não podemos ver, lançado no Brasil pelaIntrínseca, o autor constrói duas histórias paralelas que caminham até um ponto de encontro. Capítulos curtos se intercalam entre três perspectivas: a da menina, a do menino, e outra do ambiente da Segunda Guerra Mundial na Europa. São dois tempos cronológicos diferentes, um crescente, a partir de 1934, que avança até o segundo, na ocasião de um bombardeio em 1944. Dessa forma, o leitor sabe que chegará na noite trágica da explosão em que os dois personagens estão na mesma cidade, Saint-Malo – mas esse episódio está sempre em suspensão, e voltamos no tempo para entender como as crianças terão seus destinos cruzados ali.

O livro, vencedor do prêmio Pullitzer de ficção em 2014, tem tudo para agradar quem gostou de A menina que roubava livros. Aliás, não são poucas as semelhanças entre os dois romances: ambos têm crianças como protagonistas, que são, em certos aspectos, frágeis — mas, ao mesmo tempo, aprenderam a viver longe dos pais —, e têm como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial.

O estilo de narrativa de Doerr não faz com que a temática histórica pese no livro, clima que ele sabe equilibrar muito bem. Além disso, o autor conseguiu montar um relato com diversos elementos que fazem o livro emocionante, mas evitando cair no melodrama clichê, principalmente ao limitar a reflexão pessoal que os personagens fazem do contexto em que estão inseridos ou as injustiças que os cercam. Mesmo a cegueira de Marie-Laure é pouco explorada, deixando a cargo do leitor a tarefa de medir as limitações e dificuldades da menina por causa de sua deficiência.

Toda luz que não podemos ver tende a ser o livro Young Adult do ano, já presente há semanas na lista de mais vendidos ao redor do mundo e sendo uma das grandes apostas da editora Intrínseca também para o mercado brasileiro, já conhecidamente tão fã do estilo.

*Os nomes dos capítulos em que Marie-Laure e Werner são apresentados.

Trechos:

– O mar.

Ela inclina a cabeça.

– É o oceano, Marie. Juro.

Ele a carrega nas costas. Agora se ouve o grasnado das gaivotas. Cheiros de pedras molhadas, de bosta de passarinho, de sal, embora ela não soubesse que sal tinha cheiro. O mar murmurando em uma língua que viaja através das pedras, do ar e do céu. O que o capitão Nemo dizia? “O mar não pertence aos tiranos.”

– Estamos entrando em Saint-Malo agora – diz o pai de Marie -, a parte que chamam de cidade intramuros.

Ele narra o que vê: um portão levadiço; muros de defesa, também chamados de baluartes; mansões de granito; torres sobre os telhados das casas. Os ecos de suas passadas ricocheteiam nas casas altas e recaem sobre os dois, e ele avança com dificuldade por baixo do peso da filha, que já tem idade suficiente para suspeitar que aquilo que ele apresenta como singular e acolhedor na realidade pode ser estranho e aflitivo.

Foto: minha.

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27 anos, nordestina em SP, publicitária graduada e pós graduada pela USP, escritora e apaixonadíssima por moda, cinema, viajar e sorvete. Fico entediada bem rapidinho com as coisas, então, costumo fazer várias ao mesmo tempo. Vivo à procura de encanto.

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