“E seu namorado deixa?”, a Revolução Francesa e relacionamentos normais

“E seu namorado deixa?”

1. “Seu namorado vai com você?”

2. “Mas… e seu namorado?”

3. “Seu namorado não tem ciúmes?”

4. “E seu namorado deixa?”

5. “Você vai SOZINHA?!”

O quinteto das perguntas que acompanham as mulheres livres que namoram. Quem aí também já ouviu alguma delas?

Como uma mulher que é emocionalmente independente, mora sozinha e namora há 2 anos, eu já. Não quero com isso dizer que foram sempre perguntas maldosas ou de indignação, porque não foram. Na real, na maioria das vezes, soaram mais como admiração ou surpresa sincera. E eu confesso: no começo, quem ficava surpresa era eu, por ver como a ideia que as pessoas têm do que são relacionamentos “normais” em 2016 muito se parece com as dos séculos passados. Mais: surpresa em perceber que ela reflete muito mais o retrato de um relacionamento abusivo do que de um relacionamento amoroso de fato. Dois anos depois, feliz ou infelizmente, não me impressiono mais, o que não se aplica às pessoas que acabaram de me conhecer e descobrem que eu saio sozinha, viajo sozinha, tenho amigos homens e ando por aí com roupas curtas.

Ainda assim, foi só conversando com uma amiga super mente aberta, mas que ficou impressionada que eu iria passar 3 semanas em Sergipe enquanto meu namorado trabalhava em São Paulo, que tive uma epifania. Se ela, jovem e descoladíssima, ainda assim se surpreendia com uma escolha tão natural (eu estaria de férias, ele, não; minha família e meus amigos de infância moram em Sergipe, a família e todos os amigos dele são de São Paulo, etc), esse modelo de relacionamento que é quase uma prisão ia bem além de uma barreira de idade ou de conservadorismo ortodoxo. Ele está tão, mas tão infiltrado no imaginário popular que nem questionamos mais a sua legitimidade. Ou, no caso, não questionávamos. Porque, a partir daí, decidi parar pra pensar: por que a liberdade da mulher que namora ou é casada diz mais respeito ao homem com que se relaciona do que a ela mesma?

Explico melhor: a pergunta costuma inferir um dos seguintes 3 pensamentos, geralmente excludentes entre si.

O primeiro é: “e seu namorado deixa? qual o problema dele? quer ser traído ou é trouxa?”

O segundo é: “e seu namorado deixa? Nossa, como ele é bonzinho!”

O terceiro já é um pouco diferente, mas também diz respeito a um homem: “e seu namorado deixa? bem que eu queria que o meu namorado fosse assim…” 

Uma pergunta, três pontos de vista, todos inseparáveis do homem, quando o assunto deveria girar em torno da mulher. Que, a essa altura da história da humanidade, deveria ser bem mais emocional e socialmente livre.

E decidi ir um pouco mais além: desde quando vêm as ideias por trás da “e seu namorado deixa?”

Pensando comigo mesma, lembrei de um dos livros sobre história da moda que li durante a pesquisa do meu TCC. (Se você quiser saber qual é e mais indicações de livros sobre moda muito bons, leia essa lista aqui.) E cheguei à conclusão de que a pergunta surge na ideia de que os comportamentos da mulher devem refletir os ideais ou a posição social do seu Homem. Assim, com letra maiúscula mesmo.

Só na história da moda francesa, por exemplo, encontro alguns típicos “e seu namorado deixa?” coletivos. Um deles era bem comum durante o período da Revolução Francesa. Quando a nobreza começou a dar sinais de falência e a burguesia ascendeu como classe econômica, o vestuário dos homens burgueses passou a se distanciar da moda usada pela classe mais alta, pela primeira vez.  Trabalhar deixou de ser uma atividade para os pobres e excluídos para ser rotineiro da mais nova classe hegemônica e, com isso, o fator conforto entrou na equação do vestuário como não pesava desde antes da Idade Média. Mas essa grande revolução não chegou à moda feminina. Ao menos, não à moda feminina das mulheres da nova classe alta. Porque, vejam só, as mulheres passaram a ser vitrines vivas da riqueza dos seus maridos ou de seus pais. Assim, enquanto os burgueses ricos andavam por aí em calças compridas e trajes simples, as mulheres continuavam presas às camadas de tecidos e frufrus, sem respirar embaixo de um espartilho.

Ou seja, embora a literalidade do pensamento tenha diminuído, ele vem de longuíssima data. Só dentro da história da moda, eu poderia encontrar mais outra dezena de exemplos disso. Mas vou deixar essa conversa sobre a moda e o machismo ao longo das décadas para um outro texto, cês gostariam de ler? 

Quanto à pergunta “E seu namorado deixa?”, sei de duas coisas. Uma é que eu vou continuar a ouvi-la por muito tempo ainda: e tudo bem, porque isso vai refletir a minha escolha de levar o meu relacionamento do jeito que eu acredito ser saudável. A outra é que, embora ouvir muito essa pergunta seja sinal de uma mentalidade coletiva distorcida, eu gostaria que cada vez mais mulheres a ouvissem também. Porque isso significaria que elas também estão vivendo modelos de relacionamento “diferentes” numa sociedade em que é meio assustador ter um relacionamento “normal”.

A minha missão como mulher é empoderar outras mulheres.  Ajudar o máximo possível de mulheres a se posicionar como seres independentes e aprender com elas, ao mesmo tempo. Juntas, não haverá homem no mundo capaz de nos podar. (Clique aqui para ler um texto bem didático sobre como superar um término de namoro mais rápido se você acha que está nessa situação e precisa reunir forças)

E é esse todo o sentido do post. Além de dizer a quem quiser ler que não, o meu namorado não “deixa” nada… Porque eu nem cheguei a pedir a permissão dele.

Gostou? Clique aqui para mais posts da categoria “Sentir” do Declara. 


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27 anos, nordestina em SP, publicitária graduada e pós graduada pela USP, escritora e apaixonadíssima por moda, cinema, viajar e sorvete. Fico entediada bem rapidinho com as coisas, então, costumo fazer várias ao mesmo tempo. Vivo à procura de encanto.

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