O amor maldoso ou o amor abusivo

O amor maldoso se espalha como um parasita.

Começa com a piadinha engraçada sobre como você parece uma criança quando fala, quando saltita se está feliz e muda a voz ao pedir pequenos favores às pessoas. Num entardecer qualquer, ele comenta sobre a sua roupa curta demais, que talvez esteja inapropriada. Talvez. Talvez, numa noite de verão, ele ria dos seus trejeitos, numa tirada já não muito divertida na reunião entre amigos. Você se sente constrangida, porém não entende bem o porquê: foi só uma gracinha, afinal. É o jeito dele. Tem gente que é assim mesmo: perde o amante, mas não perde a piada. A questão, entretanto, é que a amante é você e ele não te perdeu. Porque você riu. Amarelo, uma risadinha nervosa, mas riu e aceitou segurar a sua mão forte na saída do bar. Voltaram juntos para casa e isso foi esquecido entre sussurros de amor e gritos de luxúria.

Uma semana se passou sem que nada anormal acontecesse e você deixou pra lá – como deixa todas as coisas sobre as quais não quer pensar. E então, já no outono, ele te achou arrogante porque você expressou a sensação de estar bonita. Colocou-a em seu lugar e você correu a trocar de roupa, prender o cabelo, tirar o salto. Ou, pior, fingiu que nem ouviu e bateu o pé: “vou sair mesmo assim”. Porém, a cada olhar alheio ouvia um eco ressoar: “deveria ter colocado calças, suas pernas já não são bonitas como antes”. Olhares de desejo se confundiram com desprezo em sua mente e a primeira coisa que fez ao chegar em casa foi jogar fora a minissaia. Para se enganar, falou em alto e bom tom que a jogava fora pois não te servia mais. Contudo, em algum cantinho de você, soube: jogara a saia fora porque não servia mais a ele. E não valeria ser jogada fora por uma peça de roupa… Certo? De ontem em diante, usarei calças, pensou, na manhã seguinte. E, mais uma vez, suprimiu a razão. Encontrou um amigo na esquina da padaria e foi chamada num canto só para ouvir, incrédula, que queria saber se estava tudo bem. Estava, você afirmou, e sinceramente se ofendeu. Seu amigo, o louco, nunca mais falou palavra, talvez porque nunca mais tenha recebido um sim aos seus convites para sair.

Encontraram-se os amantes.

Elogiou timidamente a sua roupa e a abraçou com carinho. Falou com suavidade até que, alguns dias depois, pressentiu que estava feliz. Feliz demais, que ofensa. Acusou-a de traição, de omissão de todos os “ãos” que lhe fossem convenientes em meio à ira. Você se retraiu, rebateu com um “ão”, sim, mas ao pedir perdão por algo que não fez e a alguém que não merecia mesmo um a. Ainda assim, encheu a boca para falar do b, do c, e do a… Mor. Ah, esse amor que sentia por ele e que se tornara forte a ponto de expulsar o seu amor próprio do peito onde, não esqueça, havia espaço suficiente para viverem os dois. Mas o amor maldoso precisa de ar. Precisa controlar as suas inspirações e filtrar os seus desejos. Ele se propaga no seu silêncio. E, por causa dele, ficou tudo bem.

Continuaram saindo, andando de mãos dadas e passeando de calças pelo bulevar.

Continuou sendo piadinha entre amigos e recebendo olhares de reprovação sempre que ousasse sentir-se alegre.

Alegria é o que desejo, pensa o amor amigo. Alegria é um perigo, pensa o amor abusivo. E treme. Treme de irritação ao te ver sorrir com outras pessoas, ao ver que talvez possa aprender a viver sem ele e, então, educa-a. Explica em detalhes como você, sozinha, não era nada e nem viria a ser. Se não ele, quem?

Alguém bate à porta, mas você já não pode atender porque o parasita dentro do seu corpo alcançou suas pernas. Não se mova – ele diz. Quem é você para se mover sem que o seu amante ordene? Ordene, não, nunca diria. Diria, por outro lado, que é muito de mau tom ser prepotente a ponto de agir, assim, sozinha. Afinal, não pensa em ninguém além de si mesma? Que decepção.

Enquanto isso, você diminui. Anda curvada, sorri mais para fora do que para dentro e não entende o que há de errado: você, por não ser mulher suficiente, ou… Não se atreve. O amor maldoso alcançou a sua mente e filtra os seus sentimentos.

Não é mulher suficiente, sim. Precisa ser melhor. Mais dedicada. Mais cuidadosa. Mais feminina.

Se ainda possuísse o dom do discernimento, leria as entrelinhas: seja mais submissa, mais dependente, mais objeto. Seja o que eu quiser, como eu quiser, se eu quiser – uma dama na rua e uma vagabunda na cama: flutuam no teto do quarto todas as palavras não ditas. Para ele, contudo, já não há risco. O invasor amarrou as suas asas e você perdeu a capacidade de voar: não consegue enxergar o que existe à frente e nem se ainda restou de fato coisa alguma.

Oh, Rapunzel, só mesmo a bruxa para salvá-la quando é o príncipe que a encarcera enquanto a sufoca com suas próprias tranças. O tempo passa. Você agora está presa em teias gosmentas de amor que já pareceram redes confortáveis e coloridas. Mas não há saída, pois já não são dois senão um. Você é ele, ele é você e, certamente, você é mais ele do que ele é você. Já não precisa ouvir piadas sobre os seus trejeitos, pois abandonou-os. Também abandonou os shorts, logo depois das saias e do desejo de ser vista. Não há ninguém. No seu mundo, no mundo inteiro, não há ninguém além desse mutante em que se transformaram. Esse baião-de-dois, esse dois-em-um. A física lembra: dois corpos não ocupam o mesmo espaço e isso explica porque você continua a definhar. Diminuir. Esvaecer. Sem perceber, tornou-se restos do todo que é ele. Já não luta, já não vê, já não vive.

Foto: Naira Mattia.

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27 anos, nordestina em SP, publicitária graduada e pós graduada pela USP, escritora e apaixonadíssima por moda, cinema, viajar e sorvete. Fico entediada bem rapidinho com as coisas, então, costumo fazer várias ao mesmo tempo. Vivo à procura de encanto.

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